Por que o asfalto brasileiro não resiste aos buracos?
Muitos atribuem o problema diretamente ao asfalto. Mas, na verdade, o revestimento asfáltico é apenas a camada final de uma estrutura muito mais complexa.
Nas ruas das cidades brasileiras a reclamação sobre buracos no asfalto é quase unânime. Eles surgem com frequência, mesmo em trechos recém-pavimentados, onde os remendos se acumulam a ponto de apagar o traço do asfalto original. Por que, então, ainda não conseguimos construir ruas que resistam ao tempo e ao intenso tráfego?
Muitos atribuem o problema diretamente ao asfalto, como se a causa estivesse apenas na qualidade do material utilizado. Mas, na verdade, o revestimento asfáltico é apenas a camada final de uma estrutura muito mais complexa. A qualidade da pavimentação depende fundamentalmente da preparação da base, que envolve o solo compactado e camadas de brita e sub-base, responsáveis pela sustentação da via.
Quando essa fundação é mal executada, o resultado são trincas, afundamentos e buracos precoces, independentemente da qualidade do material asfáltico usado.
Embora a construção da base e a escolha do material sejam fatores importantes, especialistas apontam que a durabilidade do pavimento depende, sobretudo, de manutenção contínua e monitoramento adequado. Para o engenheiro civil Felipe Cava, professor do Centro Universitário FEI, em São Bernardo do Campo (SP), o problema dos pavimentos está mais ligado à falta de manutenção e monitoramento do que ao material em si.
"Isso é algo que depende muito de cada local. Mas, normalmente, o material não é a principal fonte dos problemas em cidades. A falta de manutenção e de monitoramento sim", afirma Cava.
O grande inimigo invisível
Outro fator crítico para a formação dos buracos é a água. A drenagem inadequada é apontada por especialistas como uma das principais causas da deterioração das vias. Quando a água da chuva se acumula e penetra em fissuras, ela danifica as camadas internas da pavimentação, fragilizando o solo e provocando colapsos que se manifestam como buracos na superfície.
Felipe Cava reforça que drenagem e pavimentação caminham juntos. Segundo ele, a infiltração de água é um dos fatores que mais comprometem a vida útil das vias.
“A falta de drenagem pode condenar um pavimento. Caso um pavimento não tenha drenagem, a água precipitada pode infiltrar por trincas e ficar armazenada na estrutura por mais tempo. Isso fará com que a capacidade estrutural do pavimento seja reduzida e, consequentemente, diminuirá a vida útil”, disse.
Nas cidades brasileiras, é comum encontrar ruas planas demais, sem inclinação adequada para o escoamento da água, calçadas mal projetadas e ausência de bocas de lobo, fatores que aumentam a estagnação hídrica e aceleram o desgaste do asfalto.
Vale ressaltar ainda que estamos caminhando para um cenário em que eventos climáticos extremos estão se tornando mais comuns, com chuvas que apresentam volumes superiores às médias históricas. A maioria das cidades não está preparada para esses tipos de eventos.
Tráfego intenso e sobrecarga
O volume e o tipo de veículos que transitam pelas ruas também impactam diretamente na durabilidade do pavimento. O tráfego pesado, especialmente de ônibus e caminhões, exige pavimentos com camadas reforçadas. Mesmo assim, o uso frequente de veículos com cargas acima do limite previsto gera deformações, trincas e, eventualmente, buracos.
Segundo Cava, a passagem constante de veículos provoca deformações que levam ao surgimento das chamadas "trincas de fadiga".
“A ação dinâmica dos veículos, e da água nos dias de chuva, acaba fazendo com que esses pedaços trincados do pavimento se soltem e, assim, aparecem os buracos”, explica.
Esse desgaste se intensifica com o crescimento da frota de veículos, que não foi acompanhado por melhorias na infraestrutura viária. Além disso, a fiscalização ineficiente do peso dos caminhões contribui para acelerar ainda mais a deterioração do pavimento.
Alternativas duráveis e os obstáculos para sua implementação
O Brasil conta com profissionais capacitados e tecnologias capazes de oferecer pavimentos duráveis e até sustentáveis. Pesquisas em universidades e centros técnicos testam alternativas como o asfalto-borracha, que incorpora pneus reciclados e oferece maior elasticidade e resistência à fadiga. Outra inovação é o asfalto morno, aplicado a uma temperatura cerca de 40 °C mais baixa do que a do asfalto convencional, o que reduz emissões poluentes e melhora a segurança dos trabalhadores, e o asfalto espumado, que permite reaproveitar restos de pavimento.
O concreto, por sua vez, é uma opção de alto custo inicial, mas que pode durar até 20 anos e exige menos intervenções ao longo do tempo, sendo usado em rodovias e corredores de ônibus.
Apesar de existirem inovações que podem tornar o pavimento mais durável, seu uso ainda é pouco difundido no Brasil. Como observa Marcelo Souza, advogado especialista em direito administrativo, o principal entrave para o uso dessas tecnologias está nos custos e na logística.
“A tecnologia para produzir asfaltos duráveis existe, mas é cara, exige insumos atrelados ao dólar e nem todas as regiões dispõem de usinas de asfalto próximas, elevando o custo de transporte.”
O problema também é político
Apesar das alternativas técnicas e científicas disponíveis, o ciclo vicioso das obras rápidas e de baixa qualidade permanece. Os contratos são firmados com foco na entrega imediata, privilegiando materiais mais baratos ou etapas simplificadas. Como consequência, as ruas apresentam falhas em pouco tempo e demandam constantes reparos.
Marcelo destaca que o desafio maior não está na engenharia, mas na gestão contratual e no planejamento orçamentário.
“Muitas obras são contratadas com foco apenas na entrega inicial, sem planejamento para conservação periódica ou exigência clara de desempenho ao longo dos anos.”
A falta de fiscalização adequada também compromete o resultado final. Muitas prefeituras contam com equipes reduzidas ou com pouca capacitação técnica, o que favorece erros de execução e negligência.
Além disso, contratos frequentemente não preveem responsabilidades futuras da empreiteira, que recebe pelo serviço, mas não responde pela durabilidade da pavimentação. Felipe Cava enfatiza a importância do uso eficiente dos recursos.
“A má gestão dos recursos impacta inclusive no que chamamos de sistema de gerência de pavimentos. Muitas prefeituras atuam apenas de forma emergencial, corrigindo defeitos que aparecem, e não cuidando para que justamente eles não apareçam. Enquanto os recursos forem gastos só para corrigir defeitos, continuaremos com pavimentos ruins.”
A gestão eficiente da infraestrutura de pavimentação passa por um conjunto de ações planejadas para garantir a durabilidade das vias e a otimização dos investimentos públicos. Marcelo ressalta que, diante das limitações orçamentárias, é fundamental que os municípios definam prioridades claras e planejem contratos com metas de desempenho.
“Investir em bons projetos básicos, planejamento plurianual e contratos com metas de desempenho ajuda a equilibrar custo e durabilidade”, explica.
Segundo Marcelo, “O Brasil é referência mundial em normas técnicas de pavimentação, com diretrizes bem definidas pela ABNT (Associação Brasileira de Normas Técnicas) e órgãos como o DNIT (Departamento Nacional de Infraestrutura de Transportes). O problema está menos na norma e mais na fiscalização da sua aplicação e na falta de manutenção continuada. Muitas vias que falham precocemente não foram mal feitas — foram mal cuidadas.”
Ele também observa que muitas prefeituras não investem adequadamente na formação do corpo técnico.
“Falta estrutura sim, mas sobretudo falta valorização e continuidade institucional nos setores de engenharia e fiscalização. É comum que essas equipes sejam enxutas, desatualizadas ou até substituídas por conveniência política”, conclui.
O papel do cidadão e exemplos promissores
A participação social também é uma ferramenta importante para o controle das obras públicas. O cidadão pode e deve acompanhar os contratos via portais de transparência, participar de conselhos municipais e usar canais de ouvidoria para fiscalizar os serviços.
Embora o cenário nacional seja desafiador, algumas cidades têm adotado práticas que merecem destaque. Em São Paulo, o uso de pavimento de concreto em corredores de ônibus tem apresentado bons resultados. Curitiba e Belo Horizonte investem em drenagem urbana e pavimentação adequada para áreas de tráfego intenso.
No entanto, para Felipe, o Brasil ainda está distante de uma mudança sistêmica.
“Gostaria de dizer que sim, mas infelizmente desconheço exemplos no Brasil [que adotem um sistema completo de gerência de pavimentos]. No exterior temos excelentes exemplos de cidades que cuidam da sua infraestrutura. Por exemplo, Madrid,” ressalta.
O desafio de construir ruas duráveis no Brasil vai muito além do asfalto e passa pela capacidade de gestão, pelo compromisso com a manutenção e pela priorização do planejamento. Sem essa mudança de postura, o ciclo de buracos continuará se repetindo, cobrando seu preço diariamente da população e dos cofres públicos.