Leonira Gentini: a poetisa que quebrou barreiras e viveu pela arte
Conhecida carinhosamente como Léo, a artista é o primeiro talento a ser celebrado na série de reportagens Talentos de Itupeva.

Com a alma resiliente e o coração transbordando poesia, Leonira Gentini (1922-2024), conhecida carinhosamente como Léo, é o primeiro talento a ser celebrado na série de reportagens Talentos de Itupeva, que tem como objetivo destacar personalidades locais cujas histórias e contribuições ajudaram a construir a identidade da cidade.
Ela viveu 102 anos, sendo mais de três décadas dedicadas à nossa cidade, deixando um legado inestimável de arte, superação e fé. Sua vida é um testemunho de como a paixão pela literatura e pela pintura pode rejuvenescer os dias e torná-los mais leves, mesmo diante dos mais árduos desafios.

Tive o imenso prazer de conhecer Léo pessoalmente em 2020, na comemoração de seus 98 anos. Foi um dia inesquecível, repleto de emoção e de carinho. Em meio a tantos convidados, a alegria transbordava na casa, e Léo acolhia a todos com uma atenção especial.
Na ocasião, a poetisa presenteou-me com seu livro “Só Poesias”. Foi um emocionante momento ao vê-la escrevendo a dedicatória com o engenho que ela mesma criou, superando a ausência das mãos, para poder escrever o que vinha de sua alma em cada poesia, e cravava a sua maior superação em cada dedicatória que fazia. Que relíquia eu guardo comigo!
Um dos momentos mais marcantes deste dia foi a visita surpresa do poeta Paulo Roberto dos Anjos (in memoriam), que homenageou a Léo com uma poesia composta especialmente para ela e a declamou em voz alta e de forma emocionante. Todos os convidados acompanharam silenciosamente este momento mágico. E Léo, logo em seguida, fez questão de declamar uma de suas poesias.
Paulo Roberto, faleceu naquele mesmo ano, e Léo ficou profundamente triste, lamentando a perda do amigo com quem conversava diariamente – como relatado pela itupevense Cleusa Cariri.
Uma vida de lutas e inspirações
Natural de Potirendaba (SP), Léo teve uma infância marcada por uma tentativa frustrada de alfabetização. Aos 8 anos, seu pai tentou ensiná-la, mas a impaciência dele e a dificuldade dela em distinguir letras como "P, B e D" resultaram em uma experiência dolorosa.
"Ele matou o meu desejo de aprender a ler com aquela brutalidade", recordou Léo em entrevista à TV TEM, referindo-se a um episódio em que o pai, em um acesso de raiva, atirou uma carteira em seu rosto e a chamou de "burra" em italiano. Foi sua avó paterna quem a alfabetizou, ensinando-a a ler e a escrever.
Apesar desse início traumático, o gosto pela literatura floresceu na adolescência, incentivado por um grande amor aos 15 anos.
"Foi o meu grande amor. Depois até namorei alguém, mas nunca foi como o primeiro. Talvez o coração tenha ficado carente e começou a expelir, jogar fora as coisas bonitas, e eu comecei a escrever", comentou na mesma entrevista, revelando a poesia que brotava de sua alma.

A vida impôs à Léo obstáculos ainda maiores. Com menos de 30 anos, foi diagnosticada com hanseníase, resultando na amputação de uma das mãos. Nove anos depois, um câncer na palma da outra mão levou à segunda amputação. Foi com uma determinação inabalável que ela encontrou uma solução engenhosa: um elástico para apoiar a caneta ou lápis, permitindo que sua paixão pela escrita e pela poesia jamais fosse silenciada.
Sua jornada profissional começou cedo, como telefonista em 1943, período em que já devorava romances e dava os primeiros passos na poesia. Léo chegou a Itupeva em 1988, onde se dedicou ainda mais intensamente às artes, desenhando, pintando quadros e, claro, escrevendo. Sua contribuição para a cultura local foi tamanha que ela se tornou membro fundadora da Academia Itupevense de Letras.
A arte que transcende o tempo
Aos 94 anos, Léo realizou o sonho de lançar seu primeiro livro de poesias, intitulado Só Poesias. Mas a vitalidade e a paixão pela escrita não pararam por aí. Aos 100 anos recém-completados, ela nos presenteou com seu segundo livro, Contos Reais, fruto de 15 anos de dedicação, reunindo mais de 500 narrativas verídicas, muitas delas vividas ou contadas por familiares.
"Eu me acho jovem ainda. Apesar das rugas, a juventude está aqui, na cabeça. Tenho bastante histórias para contar ainda", falou aos 94 anos à TV TEM, provando que a idade é apenas um número quando o espírito é jovem.
Por muitos anos, a poetisa morou com sua irmã caçula, Judite André, que tinha o privilégio de ser a primeira a ouvir cada novo poema. "Ela ficava no quarto escrevendo e me chamava para ouvir. É muito lindo", relata Judite, uma testemunha privilegiada da criação das poesias de Léo, em entrevista para a TV TEM.
Um tributo em documentário
O minidocumentário “Quebrando Barreiras com Leonira Gentini” é a mais recente e emocionante homenagem a essa artista que nos deixou em janeiro de 2024. Contemplado pela Lei Paulo Gustavo, o filme, idealizado pelo diretor Roberto Donaire, é um tributo à sua jornada extraordinária. Por meio de depoimentos e de uma entrevista inédita, a obra não apenas eterniza a história de Leonira, mas também nos lembra de que a verdadeira arte reside na resiliência da alma e na capacidade de transformar dor em beleza. Seu legado, agora gravado para a eternidade, continua a inspirar todos que se recusam a deixar que barreiras silenciam a voz da paixão.
Memórias da irmã Judite André
Recentemente, a Folha de Itupeva visitou Judite André, de 85 anos, a irmã de Léo. Ela nos recebeu ainda muito saudosa, mas declarando que a maior alegria do mundo é ver sua irmã ser homenageada. Em uma conversa exclusiva, ela relembrou memórias da rotina da irmã e a descreveu como sua paixão, uma pessoa linda que, aos 18 anos, chegou a ser rainha de carnaval.
As duas irmãs compartilharam uma trajetória profissional. Léo foi telefonista e encarregada de setor. Judite, ainda criança, ficava no trabalho com ela e se apaixonou pelo ambiente. A partir dos 18 anos, ela também se tornou telefonista, profissão que exerceu por 20 anos.
Antes de se mudarem para Itupeva, Leonira teve uma banca de jornal em São Caetano do Sul (SP) por um bom tempo, e toda coleção de livros que eram lançados ela guardava um para si. Judite mostrou uma estante cheia de livros da Léo que serão doados, e a Cleusa Cariri, que estava presente durante a entrevista, sugeriu que fossem doados para a biblioteca do CCI (Centro de Convivência do Idoso de Itupeva), sugestão que foi muito bem aceita por ela.
Judite relata e confirma que a primeira amputação de Léo foi decorrente da hanseníase, como mencionado anteriormente. Após ser diagnosticada, Leonira ficou internada por cerca de três anos em um local específico para o tratamento. Lá ela aprendeu a lidar com enfermaria e acabou trabalhando como enfermeira. Curada, ela ficou com sequelas e a amputação aconteceu de maneira gradual, com a perda progressiva dos dedos.
Nove anos depois, Judite a levou ao médico por complicações em uma verruga na palma da outra mão. Foi diagnosticado um câncer, e a segunda amputação foi necessária para que a doença não se espalhasse para o braço.
Após a amputação, Leonira não se entregou. Além de escrever suas poesias com o engenho que criou, ela continuou com todos os afazeres da casa. Ela costurava e era perfeccionista e, quando não gostava de um resultado, desmanchava e recomeçava, como fez com roupas da irmã. Léo também fez as cortinas da casa. Judite recorda uma época em que a situação financeira estava difícil e elas decidiram comprar tecido branco para fazer panos de prato. Léo os cortava, pintava e embainhava, e Judite fazia o crochê nos bicos. Juntas, venderam "muito, muito mesmo," conta.
Léo foi um exemplo inigualável de resiliência, ela cozinhava, lavava e guardava a louça, mesmo a irmã falando que era para deixar que ela faria. Ela pintava o próprio cabelo e o da irmã. "Eu dava mais trabalho para ela do que ela para mim", conta Judite. Segundo a irmã, Léo era uma pessoa idosa que não dava "um pingo de trabalho" e foi útil até os seus 102 anos.
Judite faz uma declaração emocionante. Léo era tudo para ela: "minha mãe, minha irmã, minha amiga, minha confidente."
Léo cuidou de Judite desde os 2 anos e até ela terminar o ginásio, e depois ajudou a criar os dois filhos da irmã. “Ela não podia me ver chorando e ia me acalmar. Ela não podia me ver com dores, ficava me perguntando o que eu tinha. Ela tinha medo de que eu morresse antes dela”, relembra Judite, que ainda declara nunca ter viajado para ficar com a irmã.
A poetisa tinha uma grande ligação com o celular e a internet, e Judite lembra que ela falava que "A melhor coisa que inventaram até hoje foi o celular e a internet", ficando desesperada e nervosa quando o sinal acabava.
Até seus últimos dias, a única coisa que Judite fazia era colocar a comida no prato para ela, o restante ela fazia sozinha. Levantava, arrumava a cama e tomava banho. Depois do café, pegava a prancheta e o dicionário para escrever suas poesias, consultando as palavras que não se lembrava como escrevia. Ela também lembra que Léo tinha uma facilidade incrível para decorar suas poesias.
Judite finaliza as memórias declarando que sua irmã foi uma pessoa iluminada, perfeita e "muito resiliente". Para ela, Léo foi a pessoa mais inteligente que ela já conheceu. Uma pessoa que nunca frequentou a escola, mas construiu um legado imenso.
“Ela era sofredora, mas nada a deixava triste. Ela sempre recebia as pessoas com a maior alegria do mundo. A saudade nunca termina, ela é imensa. A dor do luto já estou aceitando, mas a saudade será eterna”, diz Judite, concluindo a nossa conversa.
O legado de Leonira Gentini, a nossa querida Léo, quebrou barreiras e transformou a vida em poesia, e sua história nos lembra que a arte mais pura reside na resiliência da alma humana. Sua jornada nos inspira a valorizar a nossa própria história e a ver a beleza que existe na superação.